Um galego contra Marcelo Caetano

 

Apesar de que foram muitos os galegos que, enquanto membros da sociedade portuguesa, lutaram contra o salazarismo, esta participação não é muito conhecida atualmente —com a exceção, provavelmente, do episódio do Santa Maria—. Não parece ter sido tão relevante a presença galega nas antigas colónias, pelo menos até onde nós conseguimos apurar, mas mesmo assim alguns galegos realizaram ações sem as quais a História dos últimos 40 anos teria sido, provavelmente, bem diferente. É o caso de Julio Moure, um missionário nascido em Arnoia que fez parte de uma das  operações que mais contribuíram para a queda do regime, evidenciando a repressão aplicada pelo exército português e suscitando a perda de apoios internacionais. Ouvimos falar sobre o Julio por primeira vez no episódio dedicado à Operação Marosca do documentário A Guerra, de Joaquim Furtado. Dado que uma história como essa não pode permanecer esquecida, decidimos procurar o contacto dele e pedir-lhe que gravasse este pequeno vídeo para nós (apenas acrescentámos a contextualização inicial), uma petição que ele atendeu com a maior das alegrias e uma energia admirável.

 

O massacre de Wiriamu

 

Em dezembro de 1972, as tropas da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) ganhavam apoios entre a população e ocupavam uma área cada vez maior. Perante esta situação, as ações do exército português eram cada vez mais agressivas, chegando a exterminar aldeias inteiras: era o que denominavam “limpar tudo”. No dia 16, o alferes Antonino Melo recebeu a ordem de proceder dessa mesma maneira com a população de Wiriamu, a aldeia cujo nome passará à História ligado a este massacre. O modo de proceder tinha sido pensado para poupar munições: as pessoas eram amontoadas nas palhotas e fechadas por fora. Para o interior, os soldados atiravam granadas de mão, que matavam a maior parte das pessoas durante a explosão e os sobreviventes no incêndio posterior. Se alguém tentasse fugir, os militares estavam à espera no exterior, prontos para disparar. O modo de atuar deve ter sido o mesmo em Juwau, mas já na aldeia de Chaworha, o processo foi mais demorado e também mais humilhante. Os portugueses obrigaram os aldeões a bater palmas para celebrar o seu encontro com o Criador, antes de os trucidarem.

 

Os Padres de Burgos

 

Vicente Berenguer e Julio Moure (Fonte: Mozambique History)

 

Wiriamu não foi o primeiro nem o último massacre cometido pelas tropas portuguesas em Moçambique. Foi, contudo, o melhor documentado e aquele que permitiu denunciar e provar os factos. Estre os grupos religiosos presentes naquela altura na colónia portuguesa, devemos destacar os Padres Brancos e os Padres de Burgos. Estas congregações, de origem estrangeira, tinham sido autorizadas a trabalhar em Moçambique, dada a incapacidade do governo colonial para evangelizar e assimilar culturalmente a área apenas com clérigos formados nas instituições ligadas ao regime. Impregnados da nova teologia emanada do Concílio Vaticano II, transformaram a velha escola da alienação colonial numa escola da consciência crítica. Sem ser esse o propósito dos padres, muitos dos alunos acabaram por aderir à FRELIMO.

No início, as congregações tentaram manter-se num equilíbrio precário entre as partes contingentes. Porém, as atrocidades cometidas pelas autoridades portuguesas levaram os Padres Brancos a abandonar o território e os Padres de Burgos a registar cada vez melhor os factos e a denunciá-los. Acudir às instâncias superiores não foi de grande ajuda: eram ignorados ou despedidos com boas palavras. A DGS e a PIDE acompanhavam e investigavam ativamente os movimentos dos religiosos, que enfrentavam interrogatórios, penas de prisão e deportações.

Desde a direção da congregação, Julio Moure trabalhava em conjunto com outros membros e com a equipa de advogados para tentar travar as detenções e as expulsões de missionários. Ele e Miguel Buendía, um padre murciano chegado recentemente que se tinha mostrado muito diligente na denúncia das ações portuguesas, receberam uma ordem de expulsão. Porém, também receberam um relatório sobre o massacre elaborado por Domingo Kansande, Domingo Ferrão e José Sangalo com uma encomenda: sair com os documentos do país e denunciar o massacre. Apesar da pouca incidência inicial do relato, os factos chegaram aos ouvidos do britânico Adrian Hastings, um dos Padres Brancos. Hastings escolheu muito acertadamente o jornal e o momento para publicar a notícia: o London Times uns dias antes da visita oficial de Marcelo Caetano a Londres para comemorar o 6º centenário da aliança Luso-Britânica.  A repercussão foi máxima: a oposição exigiu que a visita fosse cancelada, enquanto o governo de Londres defendia o regime português. As autoridades portuguesas começaram por negar a existência da aldeia de Wiriamu, posteriormente mandaram construir uma aldeia pequena num lugar de nome semelhante para levar os jornalistas e, finalmente, acabaram por reconhecer o massacre e categorizá-lo como «normal».

Durante anos, uma parte da imprensa internacional e o governo português travaram uma batalha em relação à veracidade dos factos. Neste contexto, Julio Moure e o padre Vicente Berenguer, que tinha socorrido as vítimas do massacre, desempenharam um papel fundamental: viajaram por diversos países de Europa, denunciando os massacres e o modo como os portugueses tratavam a população nativa.

 

Julio Moure hoje

 

Vencida a Guerra Colonial, o novo país enfrentava um novo desafio: criar e desenvolver um país com uma taxa de alfabetização muito reduzida, cujos novos dirigentes careciam da formação necessária. Moure foi convidado para ocupar-se da escola da FRELIMO e ele assumiu esta nova missão com dedicação, até a emoção inicial se transformar num desencanto crescente. Julio percebeu rapidamente que a corrupção estava a tomar conta das novas instituições e fez o mesmo que tinha feito anteriormente durante a administração portuguesa: denunciar. Porém, a situação era cada vez mais complicada e, pouco depois de ter-lhe sido oferecida a possibilidade de ficar permanentemente em Moçambique pela própria Graça Machel, decidiu abandonar o país.

Atualmente, Julio Moure mora numa pequena vila em Quintana Roo, no México. Orgulha-se de ter alcançado a paz com uma vida simples, trabalhando sempre no desenvolvimento da comunidade maia local. Apesar de estar fora do âmbito linguístico galego-português há tantos anos, fala um galego de uma qualidade invejável, embora no vídeo que gravou para nós tenha preferido utilizar o castelhano por se sentir mais seguro. Para além disto, Moure fala, escreve e ensina a escrever a língua maia, demonstrando uma sensibilidade em relação à diversidade cultural que nos permitiria escrever muitas mais páginas.

 

Fontes

Dhada, M. O massacre português de Wiriamu: Moçambique, 1972.
Furtado, J., Afonso, A., Gomes, C. M., Radiotelevisão Portuguesa, & Levoir (Firm). (2017). A guerra: Colonial, do Ultramar, de libertação.